domingo, 4 de outubro de 2009

A Turquia e a União Europeia

A primeira coisa que perguntei ao primeiro turco que encontrei foi "qual é o sentimento da Turquia sobre a adesão à União Europeia?". De certa forma, foi uma pergunta muito positiva porque, sem ser agredido fisicamente, fiquei a saber qual um dos tópicos sensíveis na Turquia e aprendi uma série de expressões de enorme desconforto (leia-se, palavrões). No final, o meu interlocutor resumiu os seus sentimentos em "espero que os nossos políticos esqueçam essa ideia, porque a dignidade dum povo tem os seus limites!".

De facto, esta hesitação do Ocidente em relação à integração da Turquia na União, alegadamente por razões culturais (leia-se, religiosas), é tida como um longo e profundo gesto de humilhação. Posto isto, dei por mim a pensar no que é que poderia justificar a adesão de qualquer país à grande Europa. O mais óbvio são as vantagens económicas do mercado alargado, depois a solidariedade económica e social (um dia será militar, estou em crer) e, finalmente, as razões de detalhe que, na Turquia em particular, poderão estar relacionadas com a integração dos seus cidadãos emigrados na União (essencialmente, Alemanha). Depois do que vi e senti na minha visita de seis dias a Istambul fiquei com a sensação que apenas a última razão pode fazer claramente sentido. Claro que não vivo num país em que 10% da população é turca, como a Alemanha… O choque cultural deve ser brutal e as opiniões podem ficar enevoadas por questões de vizinhança.

Um país como a Turquia, antes de aderir à União, terá que efectuar milhares de pequenas alterações. A desorganização e as faltas de conformidade com os padrões europeus são gritantes. Até eu notei que este seria um paraíso para os agentes da ASAE. Desde obras de construção civil realizadas durante a noite e em plena cidade, cabos eléctricos espalhados a três dimensões pelas paredes, a altamente duvidosa higiene na confecção dos alimentos e uma rigorosa anarquia no planeamento urbano, tudo seriam motivos para desesperar um "mangas de alpaca" de Bruxelas. Refira-se, em abono da verdade, que não tive qualquer cuidado especial com a escolha dos alimentos e não sofri mazelas gástricas.

Na minha opinião, de sábio da Turquia após seis dias de visita, em termos económicos, a Turquia não precisa da União Europeia. Talvez o contrário se justifique mais facilmente. Para ter a certeza da afirmação seguinte, viajei até ao extremo da cidade. É impressionante, todos os espaços dos pisos térreos estão ocupados com lojas, lojinhas, lojecas, botequins, tascas e todas as combinações de comércio possíveis. Vi muitas lojas com apenas 2 metros quadrados. Tudo se compra e tudo se vende. Até se compram e vendem coisas incompreensíveis. Por três vezes encontrei grupos de homens aos berros entre eles e com os telefones portáteis que empunhavam. Não faço ideia o que estava a acontecer, mas deparei-me com estas inusitadas situações dentro de um centro comercial (Bazar) e uma vez num parque público. Seria uma bolsa de valores informal?! Não faço ideia... Se calhar estavam a vender ideias!? "Tenho aqui ao telefone uma ideia fantástica para resolver o problema da insónia, quem dá mais?". Mais a sério, a vitalidade comercial que vi em Istambul não dá margem para dúvidas, há uma uma economia muito robusta por trás de tudo isto. E os preços não são de terceiro mundo, longe disso.

Disseram-me que Istambul e Ancara são realidades separadas do resto da Turquia. Desta vez, não tive tempo para me meter campo adentro, mas admito que tenham razão e que no interior existam casos que poderiam beneficiar da solidariedade social da União. Nas cidades, vi gente com menos recursos financeiros, mas, honestamente, tenho visto mais pedintes e pessoas a dormir na rua em Lisboa que nesta megapólis.

"Apesar de ser um país com democracia secular desde 1923, estarei num país maioritariamente muçulmano, portanto, certamente, a intolerância para com as outras religiões será total e as mulheres andarão todas de burca e serão humilhadas em todas as oportunidades!", dizia-me o meu preconceito antes de partir. Nada mais distante da realidade. Istambul é uma cidade hipertolerante com uma verdadeira mescla de religiões e costumes mutuamente respeitados. É curioso que até os piropos dos homens se adequam à sensibilidade da visada. Não irei elaborar sobre isto, até porque não tenho significância estatística, mas fiquei com esta sensação. Por outro lado, e a observação não foi originalmente minha, as mulheres, mesmo as mais severamente trajadas, são, em público, totalmente respeitadas por quem as acompanha. Por baixo dos lenços que cobrem as caras, vislumbram-se sorrisos, risos e gargalhadas que não me pareceram compatíveis com submissão. Fiquei com muito mais dúvidas do que as arrogantes certezas que trazia. Mais tarde, já em Portugal, descobri que, na Turquia, o porte de véu é proibido nos serviços públicos, incluindo nas escolas.

Universidade de Istambul. Foto: F Cardigos.

Quando entrei no barbeiro, um jovem de vinte e poucos anos, fã do Cristiano Ronaldo, esmerou-se a cortar-me o cabelo de acordo com o desenho que eu tinha escolhido numa revista de penteados que havia na barbearia. Era impossível a comunicação porque o inglês dele apenas era comparável com o meu turco. Apesar disso, tudo estava a correr normalmente e fiquei positivamente surpreendido por utilizar uma lâmina descartável. Na verdade, estava tudo a correr bem até que aproximou uma chama das minhas orelhas e me queimou! Fiquei tão surpreendido que estive para fugir, mas ele não me deixou mexer. No momento seguinte, já estava a enfiar um instrumento pelas minhas narinas e a aparar-me os pelos do nariz. Não contente, continuou nas sobrancelhas. Estudei a distância até à porta e, quando me preparava para correr, ele enfiou-me a cabeça dentro de uma bacia cheia de água e lavou-me, em simultâneo, a cabeça, a cara e as orelhas... Quando me libertou, eu estava tão baralhado e sem fôlego que não tive discernimento para efectuar qualquer gesto, até porque ele já me estava a colocar uma loção misteriosa na cara. Rendi-me ao mesmo tempo que sentia os músculos da cara a descontraírem-se. Nesse momento percebi que o Ocidente perdeu esta capacidade de tocar nos outros sem complexos. Aqui os homens andam de mãos dadas com os homens e cumprimentam-se de beijo na cara. Em Portugal é impensável que um homem cumprimente desta forma alguém do mesmo sexo sem que seja seu familiar directo. A sua sexualidade seria imediatamente posta em causa. Olho para o lado e, escândalo!, está uma criança a fazer uma massagem nos ombros de um maganão! Não é possível. Chamem já a polícia! Ainda por cima, o maduro parece estar a gostar! "Calma, Frederico, pensa... Entre esta criança, nitidamente familiar do barbeiro, estar alienada a jogar PlayStation, a drogar-se ou a consumir outros estupefacientes (televisão, álcool, etc) ou a ajudar a família, fazendo uma operação delicada, responsável e lucrativa, o que te parece melhor?". Oh, não! Agora passou à face! Os dedos da criança passeiam sobre a cara do homem fazendo gestos circulares, experientes e competentes. A expressão de delícia do adulto não dá margem para dúvidas. Estou baralhado. Estou mesmo baralhado... Isto, nos meus olhos ocidentais, parece-me francamente errado, mas não consigo encontrar justificação forte para a minha moralidade de trazer por casa. No final, verifico que o cliente, para além de ter pago uma bela maquia pelo trabalho de corte de cabelo (versão completa, como o meu) e restante serviço, ainda pagou uma generosa gorjeta ao rapaz, o equivalente a um almoço.

Queimar, praticamente, afogar um cliente e usar trabalho infantil... Apenas numa simples ida ao barbeiro, fiquei a perceber porque é que a Turquia nunca entrará na União. Estou a voar sobre a Turquia, despedindo-me deste vasto e populoso país. Quando olho lá para baixo penso que, realmente, eles não precisam.

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