segunda-feira, 21 de maio de 2007

O Homem que Reconheceu Neptuno

Hoje é para mim um dia triste. Tentando combater este sentimento, optei por subir à Espalamaca. Na companhia de Nossa Senhora, perto de um monumento que não lhe faz jus, fotografei uma Baía da Horta cheia de veleiros. Poucas imagens serão tão libertadoras, mas a minha alma continua presa a esta amargura.

Voltei à cidade e coloquei no leitor de música as três versões que me enviaram recentemente de “La Tempesta di Mare” de Vivaldi. O objectivo é identificar qual das versões desta obra-prima do génio humano mais me agrada. Cada versão tem sete minutos. São três andamentos em sete minutos! Esta obra foi composta em 1728. Tento imaginar o gozo que seria para Vivaldi e a sua garotada (ele era professor de música) a tocarem esta peça no meio do pátio da escola.

A primeira versão é pura. Nitidamente, a Academia de Música Antiga tentou interpretar o que estava na pauta. O seu maestro, Sir Christopher Hojwood, deu ênfase à exemplar flauta de Simon Preston no primeiro andamento, como eu julgo que Vivaldi teria querido. O Allegro, o primeiro andamento, dá aquela sensação, que os que andaram no mar bem conhecem, de lutar contra uma onda e, logo a seguir vir outra e mais outra, uma rajada de vento, seguida da tranquilidade traiçoeira que chega no segundo andamento. Aqui temos a calmaria. Este Largo dá-nos então a água a chapinhar contra o casco do barco e a suavidade do olho da tempestade… Talvez se tenham perdido alguns marinheiros porque o passo é mesmo triste e lento. O terceiro andamento, através de um Presto é o regresso da tempestade, mas, agora, como já estamos perto do porto, não é problemático e até nos dá um certo gozo. O mar bate-nos na cara e, apesar de as gotas doerem, temos a conjunção paradoxal entre a tranquilidade e a adrenalina, que os windsurfistas bem conhecem. Esta é a minha interpretação livre dos três andamentos. Tenham atenção que nunca li nada sobre esta peça e, portanto, a intenção de Vivaldi até poderia ser completamente diferente. Eu sinto-a assim.

A segunda versão é mais plácida. Falta-lhe a emoção. A flauta está distante, perdida no meio da orquestra. Não é que esteja mal, mas a falta de realce da flauta e de contraste nítido entre as notas, tiram-lhe a emoção que a primeira versão tem. O maestro Cláudio Scimone, na minha opinião, não fez um tão bom trabalho como o Hojwood.

A terceira versão é completamente louca. Meteram uma série de solistas, tiraram tanta ênfase à flauta que me parece estarem a brincar com o Vivaldi. É uma versão em que o primeiro andamento tem tanta violência que nos parece impossível ir mais longe, o que é contrariado pela tempestade furiosa que nos é dada a ouvir mais tarde, no terceiro andamento. No segundo andamento a flauta parece chorar, como se o barco tivesse naufragado durante o primeiro andamento. Como atrás dizia, o terceiro andamento é um autêntico Beaufort nível 12. Imagino que os instrumentos tenham ficado danificados após o furacão que passa por este andamento. Apesar da orquestra “Il Giardino Armonico”, dirigida pelo maestro Giovani Antonini, ser considerada uma das melhores do mundo a tocar o período barroco, não creio que o autor gostasse desta versão. É demasiado arrojada e os facilitismos fazem lembrar outras peças. Pergunto-me até se a pauta é a mesma…? A aproximação à interpretação não é, certamente. Pelo facto de puxarem mais por um instrumento ou outro e de forma, diria, aleatória faz-me lembrar um concerto de Jazz improvisado.

Deambulando por estes pensamentos, quase me esqueço que hoje é um dia bem triste. Leio na Internet que a melhor versão desta peça é a do maestro Trevor Pinnock e claro que, num dia soturno como hoje, evidentemente, não tenho essa versão. Oiço com atenção, avanço, recuo, não, nada me consegue fazer concentrar na orquestra de cordas que, com uma energia com que não me identifico neste momento, me faça sequer entender as diferenças e semelhanças. Os meus neurónios saltam, permanentemente, para algo mais mesquinho e comezinho que me dilui o espírito.

Os dias em que temos de enfrentar a maldade humana são particularmente dolorosos. Hoje é um desses dias. Tenho pena de, por raras vezes é certo, dar razão aos que pensam na inevitabilidade da autodestruição humana. Justificam-no pelas acções de egoísmo que alguns demonstram e, hoje, têm razão. Num tempo em que temos de ser particularmente solidários, abnegados e altruístas, fazendo a nossa pequena parte para um bem comum e aparentemente distante, é muito triste quando somos confrontados com atitudes de uma inacreditável maldade.

Passo novamente ao Vivaldi. Penso que já ouvi esta peça umas vinte e uma vezes. Sete vezes cada versão. Volto à primeira. Custa-me a crer que o Trevor Pinnock tenha uma versão melhor que esta do Christopher Hojwood. Para os meus ouvidos roça a perfeição. Sou embalado pela música. Finalmente, deixo-me conquistar… Há uns anos atrás quando ouvi esta peça pela primeira vez, ela servia de fundo sonoro à evolução da vida, contada em 45 segundos por um outro génio, Carl Sagan. A série chamava-se Cosmos e serviu para que muita gente, incluindo eu, aprendesse a amar a Universo. Quando observamos com os olhos (com o umbigo não funciona) e com atenção o mundo que nos rodeia, por vezes, vemos coisas tão bonitas e inesperadas que nos enchem de regozijo. Raras vezes, temos a sorte de as poder partilhar com outros, dando-lhes o mesmo prazer. Em situações ainda menos frequentes, podemos partilhar com o mundo aquilo que vemos num momento de gloriosa visão.

Lembro-me de uma tempestade que, rezam as crónicas, foi demoníaca. As ondas bateram contra a Ilha do Faial com tanta violência que se partiam e dispersavam para alturas de várias dezenas de metros. O José Henrique Azevedo fotografou uma sequência dessas ondas e passou a mostrá-las aos amigos como exemplos da estrondosa violência que pode existir nos Invernos açorianos. Um dia, ao mostrar ao seu amigo José Machado, que tem uma invulgar sensibilidade visual, repararam que, se se olhasse com atenção, na onda que se soltava do Monte da Guia podia-se ver, claramente, a face de um homem barbudo. Eu próprio olhei vezes sem conta e é mesmo verdade. Num primeiro olhar ninguém nota, mas, depois de explicado, lá está. A face de Neptuno!

Competirá à humanidade decidir se deseja continuar a fascinar-se com as maravilhas que nos acompanham ou se será melhor continuar a pensar apenas em proveito próprio. Aquilo que é definitivamente certo é que as duas não são compatíveis.

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