sábado, 28 de julho de 2007

As Sete Malditas

Os organismos que pertencem a populações que apenas existem no nosso arquipélago e de cujo cruzamento resultam descendentes férteis são chamados de “endémicos dos Açores”. As restantes espécies podem também ser “naturais nos Açores”, se cá se estabeleceram por moto próprio, ou “exóticas”, se foram trazidas pelo homem. Entre estas últimas, há umas que apresentam um comportamento ecológico agressivo, provocando danos nos ecossistemas naturais, e que por isso ganham o triste nome de “invasoras”.

É fácil perceber que quem quiser ver espécies endémicas dos Açores no seu ambiente natural terá de se deslocar às nossas ilhas. Portanto, há razões económicas óbvias para a manutenção do nosso património natural. Para além disso é bom acrescentar que alguns organismos guardam, no seu código genético, soluções farmacológicas ou biotecnológicas de longo alcance e, muitas vezes, imprevisíveis antes de serem demoradamente estudadas. A título de exemplo, são conhecidas as potencialidades de uma esponja encontrada na Lagoa de Santo Cristo para a inibição do HIV. Os estudos ainda não avançaram o suficiente para que possamos declarar que estamos perante uma substância importante, no entanto, o potencial está lá, como pode estar em diversas outras espécies, algumas delas existentes apenas nos Açores. Sendo assim, caso não preservemos o nosso património natural, podemos estar a desprezar soluções para doenças graves. Um último argumento a favor do património natural tem cariz moral. Que direito temos nós de aniquilar património, que nos pertence, é certo, mas pertence também aos nossos descendentes? Nas crónicas do Padre Gaspar Frutuoso há referências a lobos-marinhos na Ilha de Santa Maria. Esses simpáticos mamíferos marinhos desapareceram com o “progresso” da colonização humana. É fácil compreender que, naqueles tempos difíceis, havendo carne, peles e óleo ao alcance, era complicado resistir. Para mais, não havia consciência da finitude dos recursos. Hoje não é assim. Nunca poderemos alegar ignorância!

As mudanças climáticas globais têm um particular impacto nas pequenas ilhas oceânicas, como as que compõem o Arquipélago dos Açores. Ou seja, se por um lado temos um ambiente muito isolado, o que promove a especiação (formação de novas espécies) porque os organismos se vão adaptando às condições locais e o cruzamento com as populações-mãe é muito complicado, por outro lado, temos sido alvo de autênticas extinções em massa cada vez que a temperatura média do globo terrestre se altera poucos graus ou o oceano sobe uma dezena de metros ou desce mais de uma centena (como aconteceu há vinte mil anos). Esta é porventura uma razão para serem raras as espécies endémicas dos Açores. No entanto, ao nível das plantas terrestres, houve um conjunto particular que sobreviveu a umas quantas intempéries. Trata-se da floresta de laurissilva. Esta floresta dominou largas áreas em volta do Mar Mediterrâneo durante 20 milhões de anos e, por via de alterações climáticas, desapareceu dessa área. Graças ao clima húmido e temperado que caracteriza arquipélagos Macaronésicos do Norte Atlântico, encontrou um refúgio nas ilhas da Madeira, dos Açores e das Canárias. A importância deste património é tão elevada que, no arquipélago da Madeira, uma vasta área de laurissilva foi classificada como Património Mundial. Apesar de ser comum aos três arquipélagos, há diversas plantas deste tipo de floresta, ou que residem à sua volta, que são exclusivas dos Açores. Tanto por isso como pelo que expus no início deste texto, penso que é essencial preservarmos este nosso património natural. Portanto, é fundamental verificarmos se existem ameaças e, caso existam, diminuir o risco. No caso dos Açores há dois riscos: o avanço das áreas agrícolas e a proliferação de flora invasora. O primeiro risco foi particularmente grave quando, nos anos oitenta, se procedeu a arroteias indiscriminadas. Felizmente, esse tempo passou. O segundo risco continua na ordem do dia e, caso não se actue com invulgar dinâmica, poderemos perder parte do nosso património natural. Nos últimos anos, graças ao empenho da Secretaria Regional do Ambiente e do Mar e, mais recentemente da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, departamentos, poder político e cidadãos envolvidos em acções de sensibilização, foram limpas de invasoras algumas áreas classificadas. Apesar de constituir uma área apreciável, ainda não nos garante o ganhar da guerra, longe disso. Para ganharmos a guerra, ou seja, para garantirmos a manutenção da flora natural dos Açores, teremos de investir mais e a breve trecho. O plano para a erradicação e controlo da flora invasora em zonas sensíveis do arquipélago dos Açores já foi concebido e inclui acções em 723 hectares de 49 locais. Sete são as espécies que mais dores de cabeça nos dão: o incenso, a cana, a conteira, a ipomoea (também conhecida por trepadeira-de-flor-azul e prima da batata-doce), o tojo-Português, o chorão-da-praia e, imagine-se, a hortênsia! Esta última é extraordinariamente bonita, um autêntico símbolo importado dos Açores, mas apenas enquanto se limita às plantações já existentes nas zonas limítrofes de algumas estradas. Quando se propaga, ou a propagam, pelos muros divisórios das pastagens, passam a inibir a presença da flora natural nos poucos locais que a agricultura deixou livre. Mas o pior caso é o incenso. Basta olhar para as encostas Norte de São Jorge para perceber que algo está muito errado. A floresta natural foi praticamente substituída por esta árvore de folha verde clara.

As manchas de flora invasora são tão intensas que nalguns locais não basta removê-las para solucionar o problema. É necessário ter em atenção que os espaços deixados vazios podem aumentar a exposição, aumentando a erosão do solo. Há que planear, angariar a flora de substituição e, só depois, iniciar a acção.

Não podemos dramatizar. O nosso património natural é valioso e está bem preservado. Comparando com outros locais do mundo estamos, obviamente, muito bem. No entanto, temos de dar mais alguns passos para que possamos viver no ambiente mais esmerado que merecemos e está ao nosso alcance.

domingo, 17 de junho de 2007

No rescaldo do Dia do Ambiente: agir!

No dia 29 de Maio recebi uma mensagem de correio electrónico, por diversas vias e com o mesmo conteúdo. Quando recebo estas mensagens repetidamente e o remetente não é um suspeito V$@gra, costumo dar-lhes uma atenção especial. Neste caso tratava-se de um velho vídeo de 1992, gravado no Brasil, durante a Convenção das Nações Unidas para o Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida por “Cimeira da Terra”. A mensagem do vídeo tinha tanto de importante como de actual. Em traços largos, tratava-se do discurso de uma criança em nome da ECO (Environmental Children Organization) que pedia contas aos adultos sobre o estado da Terra. Aquilo que mais me tocou foi a pergunta: se não têm soluções, como podem estar a destruir o Planeta? Era actual em 1992 e é actual hoje, quinze anos depois. A diferença é que hoje sabe-se, e não se sabia então, que ainda podemos inverter a degradação.

Uma das premissas da Cimeira da Terra era que o desenvolvimento e o ambiente andam de mãos dadas. Tendo esta premissa em atenção, um economista, de nome Lester Brown, resolveu calcular quanto custaria inverter a degradação do planeta. Lester Brown concluiu que inverter o actual estado do planeta custa 161 mil milhões de dólares por ano. Porque me parece muito interessante, irei repetir quais são as parcelas que reflectem este somatório (entre parêntesis o valor em milhares de milhões de dólares): educação primária generalizada incluindo a alfabetização de adultos (16), programa de almoços nas escolas e assistência a crianças pré-escolares e mulheres grávidas nos 44 países mais pobres do mundo (10), saúde reprodutiva e planeamento familiar (9), cuidados de saúde generalizados (33), reflorestação da Terra (6), proteger os solos (24), restaurar as terras de pastagem (9), estabilizar os níveis freáticos (10), restaurar os bancos de pesca (13) e proteger a diversidade biológica (31).

Umas páginas mais à frente estavam os gastos anuais em armamento. Estados Unidos da América: 492 mil milhões de dólares por ano, se somarmos o resto do mundo chegamos aos 975 mil milhões de dólares por ano. A simplicidade e a frieza destes grandes números são aterradoras e reflectem a realidade do nosso Planeta. A guerra do Iraque, que claramente não valeu a pena, custou aos EUA 500 mil milhões de dólares. Poder-se-ia ter salvo o planeta 3 vezes com a verba gasta no Iraque. Evidentemente que o Saddam Hussein era um facínora, mas terá valido a pena destruir um país para o tirar do poder?

Quando Severin Suzuki, canadiana, doze anos, fez o discurso de encerramento no Rio de Janeiro estávamos mais longe de saber o que era necessário para inverter a degradação ambiental do nosso planeta. Hoje sabe-se perfeitamente, basta agir!

Como agir? É muito fácil. Basta pensar como é que pode utilizar o seu tempo e o seu dinheiro para fortalecer as parcelas positivas e combater as parcelas negativas. Inscrever-se e participar nas actividades das Organizações Não Governamentais (para o Ambiente, Sociais ou Cívicas) pode ser adequado. E porque não inscrever-se num Partido político? Se são os partidos que decidem, porque não começar a fazer a diferença por dentro? A desculpa que é este ou aquele país o culpado, que é este ou aquele presidente de Câmara o corrupto, ou que é este ou aquele governante o incompetente não chega. Se eles são assim, a culpa também é sua porque votou, porque não votou ou porque não se indignou. A melhor forma de demonstrar indignação é participar! Se os 6 mil milhões de cidadãos fizerem a sua pequena parte, o mundo tornar-se-á um sítio muito melhor.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

PEGRA!?

O leitor menos atento nunca ouviu falar do PEGRA, tenho a certeza. Ao contrário, o mais atento sabe que o PEGRA é algo que o Governo considera muito importante e que a oposição concorda, mas considera não existirem recursos financeiros suficientes para a sua implementação. Até aqui tudo bem e o cidadão comum, ou mesmo o mais informado, poderia considerar que estavam reunidas as condições para nada mais ligar a este assunto. No entanto, nada seria mais errado! O PEGRA é um documento estratégico da maior importância para o futuro próximo do Arquipélago dos Açores. Através do PEGRA serão definidos todos os grandes investimentos em matéria de gestão de resíduos (lixos) até 2013. Provavelmente, o que se fizer depois desse ano, será ainda resultado do que ficar agora definido. Por todas estas razões, vale a pena dar uma olhadela mais cuidada no tal de PEGRA.

PEGRA é uma sigla resultante de Plano Estratégico para a Gestão de Resíduos dos Açores. O PEGRA ficou previsto com a publicação do SIGRA (Sistema Integrado para a Gestão de Resíduos dos Açores) e assenta nas premissas estratégicas desse documento e a respectiva componente de análise técnica e económica. O documento do PEGRA tem a forma de Plano Sectorial e foi concebido durante os últimos seis meses sob a coordenação da Secretaria Regional do Ambiente e do Mar do Governo dos Açores. Para além dos técnicos da casa, o PEGRA teve como alma a equipa do Professor Doutor António Brito da Universidade do Minho e, pasmem-se, todas as câmaras municipais dos Açores (algumas através das respectivas associações de municípios), diversos organismos do governo regional, algumas entidades privadas e a Quercus. Não foi fácil, mas o documento final, apesar de algumas ressalvas importantes, foi aprovado por unanimidade. Alguns dos membros desta equipa alargada, chamada oficialmente de Comissão Mista de Coordenação, chamaram a atenção para o espírito aberto e a importância de todos os contributos para a concepção do Plano. De facto, quando se participa com sentido de responsabilidade e quando há tempo para reflectir adequadamente, o resultado é muito melhor do que a premissa inicial. Para construir o PEGRA foram distribuídos duas versões, uma dúzia de documentos de apoio, 20 pareceres oficiais, 4 reuniões alargadas e dezenas de contactos informais. Foi um trabalho extenuante, mas extraordinariamente compensador. Temos a consciência que este é um trabalho de enorme qualidade. No entanto, ainda não está terminado. Certamente, ainda contém algumas imperfeições e para as ultrapassar será necessário o seu contributo! Tal como está a acontecer com o Plano de Turismo e já aconteceu com o Plano Regional da Água e o Plano Sectorial para a Rede Natura 2000, ao cidadão é agora dada a oportunidade de verificar o Plano e enviar os seus contributos, críticas ou observações. Este é um processo de discussão pública oficial e, como tal, todas as sugestões terão de ficar registadas e ser equacionadas pela equipe técnica. As opções consideradas correctas serão vertidas no Plano. No entanto, as opções consideradas não correctas não são liminarmente recusadas; a sua não inclusão terá de ser justificada ponto a ponto. Portanto, vale a pena participar!

Acabada a discussão pública, o Plano é remetido para o Conselho do Governo dos Açores que, com as alterações que considerar adequadas, o aprovará e remeterá para a Assembleia Regional para discussão, eventual aprovação e publicação em jornal oficial. A complexidade do processo destina-se a confirmar o acerto de todas as opções tomadas.

O ponto central do PEGRA, como tem sido chamado à atenção por alguma comunicação social, é o investimento em infra-estruturas e a circulação de resíduos no nosso arquipélago e, quando não possível valorizá-los localmente, enviá-los para o continente. Como poderá verificar no PEGRA, o investimento em infra-estruturas é de 82 milhões de euros. Em todas as ilhas serão instalados, pelo menos, um Centro de Compostagem e um Centro de Processamento. Com o primeiro serão transformados em solo e adubo (composto) os resíduos orgânicos e, com o segundo, serão triados os restantes resíduos por forma a reduzir a componente não re-utilizável ao máximo. Quando o sistema estiver aperfeiçoado, restarão apenas 13% de resíduos sem outro destino que não o aterro sanitário. Ou seja, nesse momento e com um investimento mínimo, os restantes resíduos das ilhas de menores dimensões poderão ser enviados para as ilhas de maior dimensão para uma última valorização energética (não estou a referir-me a uma incineradora) ou deposição em aterro. Para gerir todos estes resíduos, será criada uma bolsa de resíduos. Sim, haverá um local em que poderão ser adquiridos ou vendidos os resíduos dos Açores. É uma ideia original no contexto de Portugal, mas já implementado noutros cantos do globo.

A maior crítica apontada ao PEGRA é a falta de uma ferramenta financeira que sirva para cobrir os tais 82 milhões de euros de investimento. Os próprios municípios referem que não têm, por si só, as verbas necessárias para o investimento previsto. Tenho de concordar que seria muito mais confortável se houvesse uma panaceia para resolver todos os problemas financeiros dos Açores, mas não é assim. Não irei avaliar a adequação do investimento municipal realizado no passado ou o planeamento agora previsto, até porque não fiz a avaliação do passado e não sei em detalhe qual é o planeamento previsto. Aquilo que sei é que apenas poderemos responder positivamente às directivas comunitárias e acabar com as lixeiras se aplicarmos os conceitos estabelecidos no PEGRA o que, inevitavelmente, nos obrigará a ser imaginativos na forma como iremos encontrar o financiamento para as estruturas previstas. Assim sendo, o Governo dos Açores, em mais uma atitude de largo alcance, e em contraste com a própria legislação continental, está a abrir aos privados a possibilidade de gerirem todos os tipos de resíduos no Arquipélago. Ou seja, as câmaras podem recorrer a iniciativas públicas-privadas ou concessionar aos privados a gestão de resíduos. Assim, será possível ampliar o investimento sem recorrer à banca nem onerar o Estado. Não se pense que esta é uma temática pouco importante. Nada que se pareça. Neste preciso momento estão a ser analisados na Secretaria Regional do Ambiente e do Mar projectos para resolver em quatro ilhas o problema dos resíduos de construção e demolição. Os privados sabem que se há algo que os humanos sempre produzirão são resíduos e, portanto, é um investimento seguro.

Volto a repetir, não estamos perante um documento completo e acabado. Temos um documento que é um excelente ponto de partida e que, com seu contributo, ficará perfeito. Em breve serão divulgados na comunicação social os mecanismos de intervenção. Participe e contribua!

O Homem que Reconheceu Neptuno

Hoje é para mim um dia triste. Tentando combater este sentimento, optei por subir à Espalamaca. Na companhia de Nossa Senhora, perto de um monumento que não lhe faz jus, fotografei uma Baía da Horta cheia de veleiros. Poucas imagens serão tão libertadoras, mas a minha alma continua presa a esta amargura.

Voltei à cidade e coloquei no leitor de música as três versões que me enviaram recentemente de “La Tempesta di Mare” de Vivaldi. O objectivo é identificar qual das versões desta obra-prima do génio humano mais me agrada. Cada versão tem sete minutos. São três andamentos em sete minutos! Esta obra foi composta em 1728. Tento imaginar o gozo que seria para Vivaldi e a sua garotada (ele era professor de música) a tocarem esta peça no meio do pátio da escola.

A primeira versão é pura. Nitidamente, a Academia de Música Antiga tentou interpretar o que estava na pauta. O seu maestro, Sir Christopher Hojwood, deu ênfase à exemplar flauta de Simon Preston no primeiro andamento, como eu julgo que Vivaldi teria querido. O Allegro, o primeiro andamento, dá aquela sensação, que os que andaram no mar bem conhecem, de lutar contra uma onda e, logo a seguir vir outra e mais outra, uma rajada de vento, seguida da tranquilidade traiçoeira que chega no segundo andamento. Aqui temos a calmaria. Este Largo dá-nos então a água a chapinhar contra o casco do barco e a suavidade do olho da tempestade… Talvez se tenham perdido alguns marinheiros porque o passo é mesmo triste e lento. O terceiro andamento, através de um Presto é o regresso da tempestade, mas, agora, como já estamos perto do porto, não é problemático e até nos dá um certo gozo. O mar bate-nos na cara e, apesar de as gotas doerem, temos a conjunção paradoxal entre a tranquilidade e a adrenalina, que os windsurfistas bem conhecem. Esta é a minha interpretação livre dos três andamentos. Tenham atenção que nunca li nada sobre esta peça e, portanto, a intenção de Vivaldi até poderia ser completamente diferente. Eu sinto-a assim.

A segunda versão é mais plácida. Falta-lhe a emoção. A flauta está distante, perdida no meio da orquestra. Não é que esteja mal, mas a falta de realce da flauta e de contraste nítido entre as notas, tiram-lhe a emoção que a primeira versão tem. O maestro Cláudio Scimone, na minha opinião, não fez um tão bom trabalho como o Hojwood.

A terceira versão é completamente louca. Meteram uma série de solistas, tiraram tanta ênfase à flauta que me parece estarem a brincar com o Vivaldi. É uma versão em que o primeiro andamento tem tanta violência que nos parece impossível ir mais longe, o que é contrariado pela tempestade furiosa que nos é dada a ouvir mais tarde, no terceiro andamento. No segundo andamento a flauta parece chorar, como se o barco tivesse naufragado durante o primeiro andamento. Como atrás dizia, o terceiro andamento é um autêntico Beaufort nível 12. Imagino que os instrumentos tenham ficado danificados após o furacão que passa por este andamento. Apesar da orquestra “Il Giardino Armonico”, dirigida pelo maestro Giovani Antonini, ser considerada uma das melhores do mundo a tocar o período barroco, não creio que o autor gostasse desta versão. É demasiado arrojada e os facilitismos fazem lembrar outras peças. Pergunto-me até se a pauta é a mesma…? A aproximação à interpretação não é, certamente. Pelo facto de puxarem mais por um instrumento ou outro e de forma, diria, aleatória faz-me lembrar um concerto de Jazz improvisado.

Deambulando por estes pensamentos, quase me esqueço que hoje é um dia bem triste. Leio na Internet que a melhor versão desta peça é a do maestro Trevor Pinnock e claro que, num dia soturno como hoje, evidentemente, não tenho essa versão. Oiço com atenção, avanço, recuo, não, nada me consegue fazer concentrar na orquestra de cordas que, com uma energia com que não me identifico neste momento, me faça sequer entender as diferenças e semelhanças. Os meus neurónios saltam, permanentemente, para algo mais mesquinho e comezinho que me dilui o espírito.

Os dias em que temos de enfrentar a maldade humana são particularmente dolorosos. Hoje é um desses dias. Tenho pena de, por raras vezes é certo, dar razão aos que pensam na inevitabilidade da autodestruição humana. Justificam-no pelas acções de egoísmo que alguns demonstram e, hoje, têm razão. Num tempo em que temos de ser particularmente solidários, abnegados e altruístas, fazendo a nossa pequena parte para um bem comum e aparentemente distante, é muito triste quando somos confrontados com atitudes de uma inacreditável maldade.

Passo novamente ao Vivaldi. Penso que já ouvi esta peça umas vinte e uma vezes. Sete vezes cada versão. Volto à primeira. Custa-me a crer que o Trevor Pinnock tenha uma versão melhor que esta do Christopher Hojwood. Para os meus ouvidos roça a perfeição. Sou embalado pela música. Finalmente, deixo-me conquistar… Há uns anos atrás quando ouvi esta peça pela primeira vez, ela servia de fundo sonoro à evolução da vida, contada em 45 segundos por um outro génio, Carl Sagan. A série chamava-se Cosmos e serviu para que muita gente, incluindo eu, aprendesse a amar a Universo. Quando observamos com os olhos (com o umbigo não funciona) e com atenção o mundo que nos rodeia, por vezes, vemos coisas tão bonitas e inesperadas que nos enchem de regozijo. Raras vezes, temos a sorte de as poder partilhar com outros, dando-lhes o mesmo prazer. Em situações ainda menos frequentes, podemos partilhar com o mundo aquilo que vemos num momento de gloriosa visão.

Lembro-me de uma tempestade que, rezam as crónicas, foi demoníaca. As ondas bateram contra a Ilha do Faial com tanta violência que se partiam e dispersavam para alturas de várias dezenas de metros. O José Henrique Azevedo fotografou uma sequência dessas ondas e passou a mostrá-las aos amigos como exemplos da estrondosa violência que pode existir nos Invernos açorianos. Um dia, ao mostrar ao seu amigo José Machado, que tem uma invulgar sensibilidade visual, repararam que, se se olhasse com atenção, na onda que se soltava do Monte da Guia podia-se ver, claramente, a face de um homem barbudo. Eu próprio olhei vezes sem conta e é mesmo verdade. Num primeiro olhar ninguém nota, mas, depois de explicado, lá está. A face de Neptuno!

Competirá à humanidade decidir se deseja continuar a fascinar-se com as maravilhas que nos acompanham ou se será melhor continuar a pensar apenas em proveito próprio. Aquilo que é definitivamente certo é que as duas não são compatíveis.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

A minha primeira regata

Quando as vagas têm quatro metros de altura, o vento mais de vinte nós e o meteorologista continua a insistir que o tempo está óptimo para um passeio marítimo é porque, das duas uma: ou temos um departamento de previsões louco ou o homem do tempo é um amante dos desportos radicais. Foi neste contexto que me encontrei no meio da minha primeira regata. Felizmente para a minha aventura debutante, o veleiro era seguríssimo e, assim, mesmo apesar de todas as asneiras que eu em conjunto com o skipper (um advogado americano recém-reformado) e o resto da tripulação fomos fazendo, não deixámos de desfrutar da natureza em estado puro. Colocámos o sistema de som no máximo e o Beethoven espalhou a sua nona até aos restantes concorrentes. Não fosse termos feito um inesperado e, pior, involuntário, 360º, até poderia parecer que percebíamos da coisa… De facto, não. No entanto, fartámo-nos de divertir e a amizade inter-continental resistiu àquele mau tempo e a outros tempos que se seguiram.

O mundo natural tem todos os encantos, cabe-nos encontrar as formas de, na segurança possível, usufruirmos dele em toda a sua plenitude. Não será, certamente, em casa, em frente ao televisor, à playstation ou no chat-room que iremos encontrar os prazeres do mundo natural. Para usufruir das imensas coisas belas e intensas que a natureza tem para nos dar é preciso dar aquele primeiro e importante passo. Agir!

Os que participam na Atlantis Cup agem, claro está. E podem ter um importante papel na mudança de comportamentos tão necessária para o acordar da nova geração. Muitos dos nossos jovens estão adormecidos, levantando-se ocasionalmente para ir às aulas ou para dar um muito excepcional passo de dança. Os velejadores podem engrossar a fileira da luta na frente da batalha pela participação e ajudar a, “heresia!”, apagar os televisores.

No dia a seguir à regata Horta-Velas-Horta com que me estreei no mundo da vela de cruzeiro, estava constipado, dorido e cansado, mas feliz. Apetece-me sacudir todos os que ainda não tiveram a oportunidade ou o desejo de velejar. Gostava de os conseguir incentivar para participarem numa regata e, de preferência, nos Açores.

sábado, 21 de abril de 2007

É no fundo do fundo que se encontra a verdade

Desde tempos imemoráveis que se sabe que é nos sítios mais recondidos que se encontram as chaves para os diversos mistérios. É lá que há mais contrastes e mais verdades. No fundo do mar, ainda há milhares de espécies para serem conhecidas, nos planetas distantes haverá, provavelmente, mundos infindos, insólitos e, até agora, insondados.

Nas grutas, não é tanto assim... O silêncio, a escuridão, o jogo entre as sombras e os raios de luz que insistem em trespassar por de trás de cada estrutura. E o silêncio…? O belo e cortante silêncio que grita em cada gruta, apenas interrompido por um companheiro de aventuras mais aflito ou, bem no fundo do silêncio, uma gota de água que cai. A imagem deste silêncio é muito difícil de captar, sendo esta arte apenas acessível aos mais audazes dos predadores de imagens. Para mim, as grutas são apenas locais apaixonantes em que, costumo encontrar alguém que julgo conhecer bem. Pura arrogância. Ninguém se conhece bem a si próprio.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Momentos Perfeitos

Há momentos perfeitos!
Quando os deuses se resolvem juntar e colocam todas as linhas que gerem o universo em consonância e quando essa geometria é positiva, nós, os humanos, sem perceber porquê somos bafejados, inexplicavelmente, pelos “momentos perfeitos”. Por vezes, somos arrebatados com tal violência que, sem palavras, quase sem respiração, nos interrogamos sobre “o que é que acabou de passar por aqui?” Os “momentos perfeitos” podem durar de milésimos de segundos até dias. Não conheço ninguém que me tenha descrito um “momento perfeito” que tenha durado mais de três dias, mas admito que é possível. Até porque, tudo é possível.
Obviamente, a nível pessoal, e felizmente, tive os meus “momentos perfeitos”, mas não será sobre esses que quero escrever. Há “momentos perfeitos” que são perceptíveis por todos os que partilham determinadas experiências e estão suficientemente atentos para os receber. Sim, os “momentos perfeitos”, normalmente, carecem de atenção. Aqueles que tomam uma atitude superficial em relação à vida ou que são demasiado egoístas para olhar à volta, não terão acesso a um número tão elevado de “momentos perfeitos”.
Nesta última sexta-feira Santa tive alguns “momentos perfeitos” que quero partilhar.
A raridade estatística dos “momentos perfeitos” e a abundância do que eu senti neste dia estão, do meu ponto de vista paradoxalmente unidos. Diz a estatística que “não há bela sem senão” e, da mesma forma que “após a tempestade vem a bonança”, provavelmente terei alguns dissabores no futuro próximo. No entanto, a estatística diz também que “se as condicionantes de um determinado evento estiverem viciadas num determinado sentido, então esse evento repetir-se-á vezes sem conta num tempo infinito”. Portanto, das duas uma, ou estou numa maré de sorte, que inevitavelmente irá virar, ou os deuses estão generosos e resolveram bafejar a ilha do Faial com “momentos perfeitos”.
Quem me conseguiu ler até aqui deve estar a pensar, “mas quais foram esses momentos perfeitos que motivam tantas palavras?!”
Comecemos pelo início: sexta-feira, quatro e meia da tarde, a sala encheu-se de gente, a Professora Helen Martins, apanhada completamente desprevenida, ouve um coro de verdadeiros amigos do peito cantarem-lhe os “parabéns a você” pelos seus 75 anos. Segue-se o Filipe Porteiro, a contar a história da Helen, a nossa história, a história da Europa, a história do DOP e a história do Faial, de uma forma tão singela e bonita que me retenho a olhar para os meus amigos, colegas e familiares. Olho para eles e a garganta aperta-se-me, uma lágrima insiste em aparecer. Parece-me que todos sentem o mesmo. Em todas as faces, um sorriso contraído espelha o apreço pela Helen, por todos nós. Caio em mim e apercebo-me, naquele instante, que eu sou eles, que tenho cada sentimento que eles têm, que cada dor e alegria daquele grupo de pessoas, é a dor e a alegria da Helen.
Horas mais tarde, na Igreja Matriz da cidade da Horta, no início do Concerto de Páscoa, o Vítor Rui Dores diz pelo sistema altifalante que “a orquestra Camerata da Horta é por alguns considerada uma das melhores dos Açores a interpretar música barroca”. Sorrio-me interiormente porque considero um exagero e porque é bom que haja quem pense que nesta ilha se fazem coisas boas. Poucos segundos depois sou, literalmente, esmagado por uma interpretação sublime da Sinfonia al Santo Sepulcro de Vivaldi. Naquele “momento perfeito”, a orquestra Camerata da Horta foi mais que perfeita. Foi melhor que a melhor de todos os tempos e de todos os sítios. Todas as notas entraram em consonância com o templo, com a vida, com a humanidade… Obrigado a todos os que tornaram este Concerto possível.
Nos “momentos perfeitos” invade-nos uma tranquilidade, quase como se estivéssemos sob o efeito de um estupefaciente que nos faz esquecer os males que circulam pelo mundo. Quando despertamos não nos sentimos mal por, naqueles momentos, termos esquecido as nossas faltas ou que algures alguém sofre. Pelo contrário, sorrimos, com a certeza, talvez absurda, que, com o empenho de todos, tudo é possível e que o mundo irá mudar para melhor! Talvez seja mesmo essa a intenção dos deuses.