quarta-feira, 26 de julho de 2006

Estrelas-do-Mar

Ainda antes da partida para o Gorringe (Ver Missão ao Gorringe nesta revista), ao analisar as listagens, estranhei a ausência de algumas das espécies dadas para a área. Por exemplo, não fazia muito sentido não estarem registados cetáceos, tubarões, tunicados, briozários e… estrelas-do-mar. Seria mesmo verdade? Estariam estes animais realmente ausentes deste monte submarino? Algumas das espécies foram agora registadas, mas para outras o mistério permanece.

Um dos grupos ausentes do Gorringe era o das estrelas-do-mar. Talvez porque seja um dos alvos dos fotógrafos subaquáticos, estes animais são autênticas estrelas do cosmos do mundo submerso. Assim sendo, pensei eu, provavelmente não há razão para que as expedições anteriores não tenham detectado a presença destes animais. Agora, qual será a razão ecológica que explica este facto? Será que as larvas, resultantes da reprodução, podem não ter chegado tão longe como ao Gorringe?

A priori o problema com as estrelas-do-mar é um pouco ao contrário. Aproveitando o transporte facilitado através das águas-de-lastro e dos cascos dos navios, a Asterias amurensis, espécie originária da Ásia, é agora uma praga fora de controlo na Austrália. Estes animais são capazes de se reproduzir sexuada e assexuadamente, produzir milhões de ovos por ano e são predadores vorazes. As larvas podem sobreviver mais de cem dias na coluna de água, o que é tempo suficiente para passarem de Portugal Continental ou Madeira para o Gorringe, de acordo com as correntes prevalecentes. Portanto, o mistério adensava-se. Onde andam as estrelas do Gorringe?

Na tentativa de resolver este mistério, resolvi fazer uma revisão do grupo e das principais espécies dadas para a Macaronésia. As estrelas-do-mar são animais pertencentes ao filo dos equinodermes. Este filo agrupa, para além das estrelas, os ouriços-do-mar, as holotúrias e as comátulas (crinóides para os mais esotéricos). Segundo o excelente manual do Professor Luiz Saldanha, os equinodermes não têm o corpo segmentado e são geralmente pentarradiados, em torno de um eixo definido pelos centros das faces oral e aboral. Isto é nitidamente visível nas cinco divisões dos ouriços-do-mar ou nos cinco braços das estrelas, embora haja algumas excepções. Esta divisão pentarradiada não é visível nalguns equinodermes, como as holotúrias. As cabeças dos equinodermes não são diferenciadas e a parede do corpo apresenta um placas calcárias que formam geralmente um esqueleto rígido ou flexível.

As espécies mais frequentes de estrelas-do-mar são Ophidiaster ophidianus, Hacelia attenuata, Marthasterias glacialis, Coscinasterias tenuispina e Chaetaster longipes . A primeira é a mais comum nos Açores e possui um púrpura avermelhado e penetrante, que fica espectacular nas fotografias. A sua distribuição estende-se desde os Açores a Santa Helena, no Atlântico Sul. Esta é uma daquelas espécies que pode ter mais de cinco braços. Com um olhar menos atento é possível confundir esta espécie com a Hacelia attenuata , embora o ponteado que o seu corpo apresenta seja característico. AMarthasterias glacialis é também muito comum e tem um aspecto esbranquiçado com espinhos ligeiramente sobre-elevados, embora com alguma capacidade de mimetismo. A Coscinasterias tenuispina é ligeiramente parecida com a Marthasterias glacialis , mas com mais braços (pode ter até nove). A Chaetaster longipes não é tão frequente, mas ocorre dos 40 até aos 1100 metros de profundidade. Para um leigo, esta estrela tem um aspecto de um juvenil porque os braços são finos e extensos e parece desprovida de coloração ou espinhos evidentes.

Era esta informação que levei para o Gorringe. Estava preparado para procurar estrelas-do-mar. E o mito começou a desmoronar-se ao terceiro mergulho! Numa frincha muito aguda encontrei umaMarthasterias glacialis . Utilizei a minha faca de mergulho para a tentar retirar. Comecei a tentar removê-la, mas senti que poderia ferir o animal e não o conseguir apanhar. Desisti quando o meu computador de mergulho assinalou o início do período de descompressão. Tinha que voltar à superfície sem “a prova”. Comecei a resmungar mal entrei no barco. “Eu juro que vi uma Marthasterias ”, mas estava ciente que sem uma segunda testemunha ou uma amostra recolhida iria ser apenas alvo de riso… Como os biólogos-marinhos costumam dizer: “sem fotos, sem amostras, sem testemunhas, não existe!”. Na mitologia dos cientistas do mar, há enormes e fantásticas histórias que continuam simplesmente a não existir. Uma delas inclui uma jamanta a saltar em cima das rochas, fora de água… Apesar das juras dos dois observadores, continuam apenas merecer um sorriso simpático. Deixemos as jamantas e voltemos às verdadeiras estrelas-do-mar. Estava então eu aborrecidíssimo por não ter apanhado a estrela, lamentando a minha vida... Eis senão quando, um dos meus colegas de mergulho nos confirma “sim, eu também vi, e fotografei!” Uff, estava a salvo da chacota colectiva.

Nos dias seguintes encontrámos mais uma espécie, a Chaetaster longipes. Estava confirmado, havia estrelas-do-mar no Gorringe e assim caiu mais um mito. Como acontece com frequência em ciência, logo nasceram mais duas perguntas óbvias: Porque é que as estrelas-do-mar não tinham sido detectadas antes? Porque continuam a não ser detectadas algumas das espécies mais comuns?

Para a Ophidiaster ophidianus se calhar a resposta até pode ser simples. Sendo uma espécie rara após os vinte metros do profundidade, eventualmente, não terá sido capaz de colonizar este monte submarino, cujas profundidades mínimas rondam os trinta metros. Por outro lado, o nosso esforço de mergulho pode não ter sido suficiente para detectar outras espécies. Apenas no terceiro mergulho conseguimos verificar a sua presença, portanto, quantos e quais outros mistérios estão escondidos a seguir ao décimo mergulho ou ao trigésimo?! Só há uma solução: continuar a estudar até compreendermos a dinâmica ecológica deste sítio fantástico!

Para saber mais:

Nos livros:

Saldanha, L. (1997) Fauna submarina atlântica. Publicações Europa-América, 364p.

Wirtz, P. & H. Debelius (2003) Mediterranean and Atlantic invertebrate guide. ConchBooks, 305p.

Agradecimentos:

Ao David Abecasis do CFRG/UAlg é o Coastal Fisheries Research Group (Grupo de Investigação Pesqueira) da Universidade do Algarve pela utilização da foto de Marthasterias glacialis obtida no Gorringe, aos João Gonçalves, Marco Aurélio Santos e Peter Wirtz pela utilização das restantes fotografias e ao Rui Prieto da SubZero pela revisão do texto. À LusoExpedição 2006 por me terem convidado para participar nesta fabulosa missão científica e pedagógica.

Artigo completo, incluindo fotografias em:

http://www.horta.uac.pt/Projectos/MSubmerso/200607/equinodermes.htm



Nuclear, não obrigado!

Parte 1 - Esta semana terminou a Luso-Expedição 2006. Esta missão científica e pedagógica levou cientistas e estudantes, a bordo do Navio de Treino de Mar “Creoula” do Ministério da Defesa Nacional, até ao monte submarino Gorringe. Felizmente, tive a oportunidade de participar nesta inesquecível viagem. Num momento em que tanto e bem se fala da extensão da plataforma continental de Portugal é essencial conhecermos bem os nossos mares e os seus fundos. Apenas com a análise das macro-espécies observadas ou recolhidas, esta iniciativa da Universidade Lusófona aumentou em 40% o número de registos para este monte submarino. Espectacular!

Parte 2 - Depois da publicação do meu artigo sobre a caça-submarina recebi algumas mensagens congratulando-me pela opinião expressa e partilhando-a outras nem tanto… Aqueles que contestam a minha opinião alicerçam-se em dois vectores essenciais: 1) o baixo impacto ambiental da caça quando comparada com outras actividades humanas e 2) a falta de dados científicos sobre o impacto deste desporto. Houve outros argumentos esgrimidos, mas não são suficientemente robustos para merecerem referência.

Em relação aos dois pontos de vista expostos tenho que admitir que são basicamente verdadeiros. De facto, há actividades com consequências ambientais muito piores que a caça-submarina e não há muitos trabalhos que determinem o impacto ambiental da caça-submarina. Vou começar pelo segundo argumento. Não há muitos trabalhos científicos sobre caça-submarina e o seu impacto ambiental, mas há alguns. Destaco em especial o trabalho de licenciatura do meu colega Hugo Diogo e que foi parcialmente exposto nesta revista (verMundo Submerso número 87). Na sua tese, o Hugo através de uma abordagem desapaixonada, analisou durante diversas semanas todas as caçadas e mesmo grande parte dos tiros efectuados numa determinada área da Ilha de São Miguel. É um trabalho exemplar que deveria ser repetido noutras áreas de Portugal. Em termos gerais, o Hugo chega à conclusão que a caça tem impacto ambiental, mas que este é baixo. Outros dados apontam para o baixo impacto da caça, mas para a importância do somatório das diferentes actividades recreativas extractivas (nas quais está incluída a caça).

Agora o segundo argumento. Como demonstrado no trabalho do Hugo, de facto, a caça-submarina, especialmente se existirem limites e forem respeitados, como o são nos Açores, tem muito menos impacto que outras actividades. No entanto, isso não significa “impacto zero”. Esse impacto poderá ser colmatado com algumas iniciativas simples, mas de largo alcance: criação e respeito de áreas marinhas protegidas, avaliação dos candidatos a caçadores (talvez na sequência de cursos de apneia) e fiscalização efectiva.

Como referi acima, troquei algumas mensagens com diversos interessados na caça-submarina desportiva. Numa dessas mensagens escrevi, e foi-me sugerido que o publicasse, o seguinte: “A caça é um passeio pelo mistério, pelo desconhecido, há um certo frisson pelo perigo, é uma tentativa de atingir as melhores marcas e é também uma forma de convívio. Para alguns dos caçadores é ainda, e mais que tudo o resto, um complemento ao mar que amam. Caso os caçadores dêem passos no sentido da utilização sustentada dos Oceanos, os restantes utilizadores terão de lhe seguir os passos. E aqui é que está a pedra de toque! Enquanto os desportistas desprezarem, pelo menos na atitude pública, o meio de que tanto gostam, como se poderá esperar que os outros o façam?”

Consensualmente, as maiores ameaças ao mundo marinho são: a poluição, a sobre-pesca e a alteração da orla costeira. Porque há algumas iniciativas para que Portugal avance nesse sentido, destaco a inutilidade da energia nuclear. Portugal é um país pobre que, pelo que infelizmente conhecemos, não tem capacidade para fiscalizar as suas actividades industriais. Agora imaginem uma central nuclear desregrada…? Lembram-se de Chernobyl? Por outro lado, o lixo nuclear, que resta após a produção, tem uma degradação muito lenta (centenas de milhares de anos) e é altamente poluente. Por causa disso, alguns países resolveram “livrar-se” destes restos colocando-os em bidões e afundando-os nos fundos oceânicos. A degradação rápida desses recipientes (uma centena de anos) irá libertar o poluente que lá está dentro. Espero que alguém esteja a pensar seriamente nisto… Depois de se ter decidido que não haveria mais lançamentos de poluentes no mar alto, o lixo nuclear passou a ser “tratado” de diversas formas incluindo o transporte em embarcações eternas, que passeiam pelos mares sem porto de chegada. Há iniciativas tipo “varrer o lixo para baixo do tapete” que estarão operacionais em 2010, segundo consta. Algo me diz que esta é uma não-solução e que a deveríamos evitar enfaticamente. É curioso que os dois países que neste momento “debatem” a entrada no clube da energia nuclear são Portugal e… o Irão. Fará sentido?

Apesar de este ser um problema muito sério, não significa que nos esqueçamos do resto. Na minha opinião, temos de encarar o meio ambiente como um todo, em que todos temos a responsabilidade de minimizar o nosso impacto pessoal e trabalhar colectivamente para a recuperação dos ambientes degradados que, infelizmente, nos deixaram.

Para saber mais:

http://en.wikipedia.org/wiki/Nuclear_waste

http://www.sortirdunucleaire.org/


Publicado na coluna "Casa-Alugada"