terça-feira, 26 de agosto de 2003

O Verme-do-Fogo

Este pequeno animal com apenas alguns centímetros tem uma capacidade de defesa invejável, a qual, aliada a uma ampla dieta faz com que seja um dos animais bem adaptados aos ambientes costeiros de das zonas tropicais e temperadas do Atlântico e Mediterrâneo.

O verme-do-fogo é um anelídio, pertence à Classe das poliquetas (a Classe mais antiga dos anelídeos) e tem o nome científico Hermodice carunculata. As poliquetas são muito abundantes havendo mais de 8000 espécies marinhas descritas e a dimensão dos animais adultos pode variar entre os poucos milímetros até 50 cm de comprimento. O grupo das poliquetas inclui animais comuns e sésseis, como os espirógrafos (Sabella spallanzani), outros têm vida livre, como é o caso do verme-do-fogo. Para além do Hermodice, há outros vermes-do-fogo pertencentes aos géneros Eurythoe, Chloeia e Amphinome, mas neste artigo vamo-nos restringir ao Hermodice carunculata.

O corpo do verme-do-fogo, como todos os anelídios, é composto por anéis (ou segmentos) dispostos longitudinalmente. Os anéis são achatados e o comprimento total do indivíduo pode atingir chega 30 cm (embora em cativeiro possa atingir dimensões mais elevadas). A cor da zona ventral pode variar entre o amarelo e o vermelho a parte dorsal varia entre o castanho pálido e o preto. A separação dos aneis é facilmente visível exteriormente pela existência de uma linha branca. As brânqueas são detectáveis pela coloração avermelhada.

Apenas os anéis da cabeça e zona posterior são especialmente diferentes, sendo os restantes identicos. Todas as poliquetas possuem em cada segmento um par de órgãos chamados de parápodes. Os parápodes podem assumir funções diferentes conforme a espécie de poliqueta. No caso do verme-do-fogo, cada anel ou segmento possui sedas ocas e brancas, as quais possuem veneno no seu interior e que servem para defesa ou ataque. As sedas possuem minúsculos arpões na extremidade que, no caso de um ataque, penetrarão e permanecerão no corpo da vítima, destacando-se do verme-do-fogo. Para ocorrer libertação de sedas não é necessário contacto, basta aumentar o stress a que a poliqueta está sujeita. Mesmo para os seres humanos, a dor causada pelo toque num verme-do-fogo pode ser muito elevada, causando irritação intensa da pele e ardor (daí o nome de verme-do-fogo). No caso de tocar num verme-do-fogo pode tentar remover algumas das sedas colocando e retirando adesivo sobre a parte da pele exposta. A lavagem com álcool também pode aliviar a dor, mas o melhor mesmo é não lhes tocar!

Quando se sente ameaçado, o verme-do-fogo eriça-se, expondo as sedas de uma forma mais acentuada. Esta defesa permite-lhe deambular pelos fundos marinhos mesmo durante o dia, o que não acontece com a maioria dos animais sem exosqueleto.

Estes animais possuem sexos separados, embora, quando adultos, não sejam discerníveis a olho-nú. Tal como a maioria das poliquetas, quando expostos a extremos de temperatura, salinidade ou pH, libertam ovos ou esperma, numa última tentativa de deixar descendência, e depois morrem.

É um animal comum na maioria dos fundos rochosos das ilhas Atlânticas de Portugal. Visto não ser alvo de qualquer pescaria, o seu número é elevado e a espécie não se encontra em qualquer perigo. O pico da abundância é por volta das 16 horas solares, embora possa ser facilmente oberservado durante todo o período diário.

O verme-do-fogo distribui-se pelo Atlântico tropical, incluindo também a Ilha de Ascensão, os Arquipélagos da Madeira e dos Açores e Mediterrâneo. Pode ser encontrado em recifes de coral, por baixo de pedras, ou no meio de fundos compostos por algas ou em fundos de vasa, desde a superfície até aos 60 metros de profundidade.

É um animal predador, mas também se pode alimentar de animais mortos (necrófago) ou mesmo em putrefacção (saprófago). Para a detecção da comida possui um órgão especializado, com o nome carúncula, localizado na cabeça. Depois de detectarem o alimento, iniciam uma "frenética" perseguição até o alcançarem. A sua dieta é composta por animais como peixes mortos, corais, anémonas (que podem ter até 10 vezes o seu tamanho), nudibrâqueos, gorgónias ou outros organismos sésseis. Algumas anémonas, através da variabilidade da descendência e apuradas por selecção natural, já desenvolveram mecanismos de defesa para escapar aos ataques de vermes-do-fogo. Apesar de ser um organismo solitário, pode, por vezes, ser observado a alimentar-se em grupo. Por outro lado, o verme do fogo serve de alimento a diversos predadores como algumas espécies de caranguejos e camarões.

Dado serem animais que se arrastam lentamente pelos fundos e terem cores vivas e contrastadas, são facilmente fotografáveis e com resultados muito compensadores. As fotografias de detalhes de vermes-de-fogo, que associam alguns anéis do seu corpo (escuros) às sedas (brancas e vermelhas), já valeram alguns comentários muito positivos ao trabalho da maioria dos fotógrafos subaquáticos, mesmo amadores.

Estes animais são especialmente odiados pelos aquariofilistas especializados em corais, pois os vermes-do-fogo em cativeiro podem desequilibrar o frágil e pequeno ecossistema. Para além disso, o seu comportamento no aquário é tímido o que inviabiliza a sua detecção até ser tarde demais... Outros aquaristas defendem o interesse e beleza desta espécie, apelando para a sua exposição, mas nunca em conjunto com outros organismos sésseis (a menos que para servirem de alimento...)

É também nas coisas pequenas que se escondem muitas das belezas e mistérios subaquáticos. É como que um renovar do interesse, quando o mergulhador passa da contemplação pelos grandes peixes e paisagens espectaculares para as pequenas delicadezas marinhas. Para quem ainda não o fez, nada como mergulhar e começar a redescobrir o mar numa nova, pequena, complexa e delicada dimensão onde, entre outros, se encontra o verme-do-fogo.

Para saber mais

Taxonomia:
Filo: Annelida
Classe: Polychaeta
Sub-classe: Errantia
Família: Amphinomidae
Espécie: Hermodice carunculata

Nomenclatura:
O verme-do-fogo pelo mundo: "verme-do-fogo" ou "lagarta do fogo" (PT), "rag worm", "bearded fireworm" ou "bristle worm" (UK), "ver de feu" (F), "vermocane" (I), "feuerwurm" (D).

Guias de identificação:

Moonsleitner, H. & R. Patzner 1995. Unterwasserführer: Mittelmeer (Niedere Tiere). Verlag Naglschmid, Estugarda. 214p. Guia de invertebrados muito completo para o Mediterrâneo. Tem boas fotografias e muita informação interessante sobre a bio-ecologia de algumas espécies.

Morton, B., J.C. Britton & A.M.F. Martins 1998. Ecologia Costeira dos Açores. Sociedade Afonso Chaves, Ponta Delgada. 249p. Este livro transmite valiosos conhecimentos sobre o funcionamento dos ecossistemas costeiros dos Açores. Obrigatório na preparação de estudos sobre ecologia na zona entre o supralitoral e o infralitoral dos Açores.

Saldanha, L. 1995. Fauna Submarina Atlântica. Publicações Europa-América. 364p. O facto de estar escrito em Português confere-lhe uma franca vantagem em relação a outros guias do género.

Wirtz, P. 1995. Unterwasserführer: Madeira, Kanaren, Azoren (Invertebrates). Verlag Naglschmid, Estugarda. 247p. Guia de invertebrados muito completo para os Arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores. Tem boas fotografias e muita informação interessante sobre a bio-ecologia de algumas espécies.

Internet:
Bloob.it - http://www.bloob.it/Biologia/specie/anellidi/hermodice.htm

The Krib: Aquaria and Tropical Fish - http://www.thekrib.com/Marine/bristle.html

Advanced's Aquarist Online Magazine - http://www.advancedaquarist.com/issues/may2003/short.htm

Biografia:

Frederico Cardigos - é licenciado em Biologia Marinha e Pescas pela Universidade do Algarve. Estagiou no Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (DOP/UAç) e é mestre em Gestão e Conservação da Natureza. É bolseiro do Centro do IMAR da Universidade dos Açores através do Projecto MAROV (MCT-FCT-PDCTM/P/MAR/15249/1999). Colabora activamente no Projecto OGAMP (Interreg IIIb).

Leia o artigo completo, incluindo ver as fotos em:
http://www.horta.uac.pt/Projectos/MSubmerso/old/200308/Hermodice.htm


Mar a Saque

No Verão, uma das tarefas que me está atribuída profissionalmente é viajar entre as ilhas dos Açores e monitorizar alguns índices de saúde ambiental marinha. Não é uma tarefacomplicada, embora seja exigente do ponto de vista físico. É necessário mergulhar muito, registar a abundância da maioria das espécies e depois retirar algumas conclusões. Uma das tarefas complementares, para certificar que os dados obtidos estão correctos é conversar com os utilizadores. Estes utilizadores vão desde o pescador (que é a melhor fonte de informação), aos operadores turísticos (começando pelos guias de mergulho, e passando pelos skippers de embarcações de passeio), aos polícias marítimos e a outros interessados. A informação obtida por esta segunda via tem a vantagem de calibrar os dados obtidos durante o mergulho e de dilatar o período de amostragem para além do momento de monitorização.

Durante esta actividade, quando se proporciona ou há interesse por parte da população local, fazemos palestras públicas em que explicamos o nosso trabalho e mostramos algumas imagens do que temos visto no mar. Vivam as máquinas fotográficas digitais, que permitem sair fora de água e ter acesso imediato às imagens e com uma qualidade muito razoável! Da discussão gerada nas palestras obtém-se ainda mais informação que acaba por servir de complemento às entrevistas específicas.

Utilizando esta aproximação a três tempos: verificação no local, entrevistas e palestras obtém-se um quadro realista do estado do ambiente e podem fazer-se sugestões sobre o caminho a seguir no sentido de manter ou recuperar os valores ambientais. Estas sugestões são mais tarde adaptadas à realidade sócio-económica pelos gestores políticos sob a forma de lei, regulamentos, disposições transitórias, etc. Este é o processo.

Apesar de não ser nossa competência, pelo facto de estarmos no terreno, somos alvo de desabafos sobre o empenho e eficiência das medidas de conservação da natureza. É interessante verificar que não há qualquer conversa que não passe por duas carências: falta de participação pública e de fiscalização. Em relação à primeira, parece-me que é um problema global. A falta de empenho das pessoas nas decisões que as afectam resulta em factos tão graves como a abstenção nos processos de escolha de representantes (abstenção eleitoral), daí não ficar espantado pelo mesmo acontecer no mar. No entanto, sabendo quão bonito e espectacular pode ser o mar, parece-me que ainda poderemos fazer mais para cativar o público. É algo que as pessoas que se preocupam pela coisa marinha terão de fazer no quotidiano.

Já a segunda resulta de problemas mais palpáveis e com resolução mais fácil, caso passe a haver interesse por parte do poder político e, a outros níveis, pelas estruturas por ele criadas. O nível de fiscalização do mar desceu a níveis tão baixos que chega a ser hilariante pelas piores razões. Basta sair para o mar, coisa que a polícia marítima não faz tantas vezes como o necessário, para ver as enormidades ambientais mais inacreditáveis. Para além do ambiente, a própria segurança no mar é de todo esquecida pelos prevaricadores. Receio o pior e não apenas em termos ambientais... E quando questionados os prevaricadores, a resposta é unanime: “se não formos nós são os outros, o mar está a saque!” Quando interrogada a polícia marítima, a resposta também é unanime: “dêem-nos meios!”.

Não vou aqui debater as razões que estão por trás deste alheamento, mas é inacreditável que quando se fala da manutenção da jurisdição de Portugal sobre as 200 milhas da ZEE, os mesmos dirigentes se esqueçam que aos direitos estão associadas responsabilidades. O alheamento da protecção das zonas costeiras de Portugal tem de terminar urgentemente, antes que seja tarde demais. Está à vista de todos (e este todos é mesmo TODOS) que o mar está abandonado. É urgentíssimo fazer alguma coisa!

Publicado na coluna "Casa Alugada"